30.1.08

2nd short story

Estava sentada no ultramoderno divã do psicanalista há horas. Já nem sabia quantas consultas já tinha tido.

As imagens projectadas no tecto sucediam-se para que dissesse a primeira coisa que me viesse à cabeça sobre aquelas negras manchas abstractas: “Sangue, dor, violação, traição, mentira”… Achava que já as tinha dito a todas. Todas as que tu precisavas de ouvir para me marcares mais uma série de consultas. Não que estivesse maluca, mas gostava da luz filtrada do espaço onde, uma tarde por semana, desde que tentara o suicídio, aquele homem de voz grave falava sem pressas.

Para mais, permitias-me fumar enquanto me ouvias falar do passado, do presente e das minhas expectativas de futuro. Ouvias-me com uma atenção cativante e lembravas-te de tudo ao pormenor.

Apenas na última sessão te havia notado alguma desconcentração quando, ao esticares-me a mão para me ajudares a levantar do divã de couro preto, a saia me subiu um pouco mais. Notara-te um ligeiro tremor no lábio e uma pausa mínima no discurso.

Ficara ansiosa por esta nova consulta. Queria sentir-me despida pela tua mente, como sempre acontecia, mesmo quando a saia não subia, mas nada me preparara para o que estava prestes a acontecer.


postado por cromossoma X

É engraçado poder mexer com a cabeça das pessoas. A pouco e pouco fui subjugado por ti. Mas sempre fui um profissional. Daí o meu ar atento, as concordâncias, os silêncios magnéticos.
Mal sabias tu o que estava montado, numa sala contígua, aquela mesmo por detrás do espelho que era apenas um vidro anti-reflexo. Tinha ficado desorientado e inebriado por ti desde o primeiro cheiro que poisou sobre o consultório. Admito que me provocava e foi isso que me fez comprar uma quantidade de câmaras de vídeo de alta definição.
Uma estava apontada à tua cara, escondida pelo candeeiro que fitavas.
A segunda apontava os teus seios, escondida pelo alarme de incêndios.
Depois fui colocando várias nas mais variadíssimas posições.
Tinha o teu queixo, os teus olhos, a tua anca, o teu tornozelo, a magnífica curva da coxa, os braços que mexias e abrias e fechavas enquanto falavas.
Tinha-te toda, sempre gravada. Horas a fio. Nem precisava de montagem, pois no quarto secreto tinha montado toda uma suíte de vídeo na qual poderia examinar-te, estudar-te, ver-te e desejar-te.
E foi num desses dias, em que não estavas, que comprei duas prostitutas que viveram esse quarto e essas imagens comigo.
Confesso, atingi várias vezes o nirvana. Mas nunca serias tu, paciente que confiavas na minha profissão.
Não podias ser tu.

publicado por cromossoma Y


Comecei a sentir necessidade de estar contigo mais vezes. Aquela tarde semanal, às vezes quinzenal, não me chegava. Queria poder acabar com aquelas consultas da tanga, mas não sem antes ter outra forma de poder estar contigo sempre que me apetecesse.

Por outro lado, era melhor controlar esse meu desejo. O último homem por quem tinha sentido algo semelhante não tinha acabado muito bem e fora por isso que toda a minha vida se precipitara, perdendo por algum tempo a sanidade, para sempre amigos e contactos. Valera-me ser filha de boas famílias com mais do que muito dinheiro para me sustentarem. Ainda assim, a minha mesada era entregue apenas mediante as facturas das consultas do psicanalista.

Tive a preocupação de procurar um psicanalista com alguma reputação, mais pelo seu charme, do que pela competência. Não tencionava nem por um segundo ficar ali a falar da minha vida, das minhas situações-limite, de quem eu era, com um gajo que, para além de bastante mais velho, não conhecia de lado nenhum. E de facto, não sei se serias grande psicanalista. Poucas palavras que correspondessem à verdade tinhas ouvido da minha boca durante todo aquele tempo, mas continuavas naquela tua linha suave, de quem fala e deixa falar, por vezes guiando um pouco a conversa para o assunto que querias, outras, deixando-me seguir à minha vontade.

Por vezes ocorria-me que te assustava. Talvez fosse por isso que não te aproximavas mais. Certamente terias conhecimento pelo meu historial clínico de muitas coisas que nunca havia abordado nas consultas. A forma como tinha acabado a minha relação tinha sido “sui generis”. Provavelmente sentias-te confuso por nunca teres tido aquela mesma mulher ali no teu divã. Provavelmente perguntavas-te o que fazia eu naquelas consultas. Tinha começado a ir pelo dinheiro, obviamente. Depois começaste a fazer-me sentir menos depressiva. E depois, por ti, pelo ambiente criado em teu redor, pelo circo que eu montava na minha cabeça enquanto deitada naquele divã.

Parecia sentir-te logo atrás de mim. Tinha a sensação do calor que subia do teu corpo e que sentia a tua respiração no meu pescoço. Ou era o calor! Suava em bica no teu consultório. Fazia lá sempre um calor infernal. Daí que tivesses sempre uma ventoinha ligada que, de tempos a tempos, fazia a sua brisa soprar levemente no meu pescoço e que eu permitia imaginar que eras tu.

Naquele dia deixei-me ficar dentro do carro à espera que saísses do consultório. Queria ver onde irias. Precisava saber que locais frequentavas, se queria ver-te fora daquele lugar.


postado por X

Nesse dia não tinha mais consultas. Reservava sempre o resto da tarde depois da tua hora. Queria ver se as imagens de ti tinham sido captadas e gravadas. Sentei-me nesse quarto secreto a ver-te rir e chorar, ficar séria ou gritar. Revi o ódio nos teus olhos quando falavas do teu ex, assim como notava todo o teu encanto quando falavas de coisas triviais.
Sentia uma paixão sobre ti. Mas não sabia se era sobre ti física ou se sobre a tua alma.
Encantavas-me com o teu mundo perturbado, mal sabendo tu qual seria o meu.
Nesse dia apeteceu-me fazer as minhas coisas, só minhas, no meu mundo secreto só meu.
Nunca esperei que tivesses a louca ideia de me seguir e por isso nem sequer reparei em ti ou teu mini azul. Sim, eu sabia qual era o teu carro, pois espreitava-te do consultório a atravessares a rua todas as vezes que nos despediamos.
O caminho até ao meu esconderijo não era muito longo. Consegui arrendar um armazém enorme em Xabregas, a caír aos bocados e à espera de intervenção divina. Mas era nele e não em casa que gastava as minhas horas e os meus encantos. Fazia colecções, sabias? Colecções de quadros velhos e gastos pelo pó, de molduras partidas ou estragadas pelo tempo, de espelhos quebrados ou gastos, de janelas típicas de um país que deixou de existir.
Outra das minhas manias era conseguir retratos de toda a minha árvore geneológica. Ainda faltavam muitos e sabia tarefa impossível. Mas tinha um amigo alfarrabista que juntava todos os artigos que tivessem algo a ver com a minha grande família. Mas a maior parte do armazém estava reservada para um piano de semi-cauda e o seu banco. Havia mais uma cadeira e uma estante. Era aí que descarregava todos os meus receios e também era aí que, de vez em quando, um amigo violinista fazia o mesmo comigo. Conhecíamo-nos há anos e esta foi a forma que encontrámos para melhor falarmos e sermos unos.
O armazém tinha ainda uns sofás velhos tapados por mantas coloridas e muitas almofadas em redor. Não havia tv mas uma aparelhagem sofisticada cujas colunas faziam soar e ecoar os sons mais perfeitos para o meu gosto.
Mas antes de lá chegar, fui beber um copo à esplanada da Graça, bairro que habitei muitos anos e espaço onde escrevi quase tudo que escrevi de jeito. Gostava de beber um Jameson e ver o fim do dia. Depois jantava em tascos ali perto. Tinha um ou dois preferidos e ia a cada um alternadamente.
Gostava de jantar sózinho onde escrevia e desenhava nas minhas sebentas coisas acerca dos meus pacientes. Metade das quais era sobre ti. Como te encantar? Como te seduzir?
Mas sou tímido por natureza no que respeita a relações humanas. Já passei por algumas que conheceram sempre um fim. E um fim é das coisas que mais me abala. Por dentro e por fora.

publicado por cromossoma Y

Segui-te. Observei-te, sentada no mini, a tomar a tua bebida na esplanada ao pôr-do-sol, enquanto escrevinhavas qualquer coisa num caderninho já muito coçado. De vez em quando paravas e contemplavas a cidade à tua volta, a pressa das pessoas que passavam enquanto tu gozavas prazeirosamente o tempo que tinhas para perder. Vi-te esboçar um sorriso ao de leve. Reparei como ficavas bonito quando sorrias e como o teu olhar sorria contigo. Achei-te só. Feliz e terrivelmente só. Resignado com a solidão, talvez. Um homem como tu estava destinado a ser amado e a ironia de não o seres dava-te a sensação de seres especial. Como se fosses algo que os outros não compreenderiam.
Vi-te jantar numa daquelas tasquinhas encantadoras de tão típicas. Apontei mentalmente o seu nome e o caminho que seguiste até Xabregas. Nunca ali havia estado.
Pela pequena janela do armazém, junto ao portão de chapa metálica, vi-te colar umas fotos no teu album, deitares-te no sofá com ar pensativo e sentares-te ao piano tocando uma melodia triste acabada de inventar naquele mesmo instante. A forma como acariciavas as teclas fez-me ter vontade de te tocar da mesma forma, a melodia trouxe-me a vontade de ser tocada e de ser eu própria a tua obra.
Depois, de repente paraste de tocar. Notei que me olhavas. E eu, sem pensar, encostei os meus lábios ao vidro, soprei uma lufada de ar quente fazendo-o embaciar e de seguida escrevi com a ponta do dedo: "Quero os teus segredos" e sorri.

Postado por cromossoma X

Enquanto tocava um improviso tive um arrepio estranho. Algo não estava bem. Parei de tocar com acordes graves e fortes cuja vibração me dissesse o que descobrir. E olhei para a janela. Fiquei estupefacto, sem nenhuma reacção. Vi-te embaciar o vidro com um magnífico beijo, um beijo que eu ansiava há tanto. E depois escreveste qualquer coisa. A minha maior vontade era correr, abrir o portão e arrastar-te para mim. Mas não tive força nas pernas. Fiquei quedo e mudo durante muito tempo. Ouvi a tua risada, os passos de fugida e o roncar do motor. Ainda ficaste por ali à espera de me veres ao portão para imediatamente acelerares e te despedires pelo espelho retrovisor. Mas como não o fiz, arrancaste devagarinho, como quem fosse dar uma volta de carro apenas pelo gozo de conduzir.
Olhei para o piano e saíu-me uma melodia maldita, trovejante, poderosa que ia perdendo a sua força para dar lugar a uma melodia primaveril, delicada e a ti dedicada. Gostava que a tivesses ouvido, pois perdeu-se para sempre naqueles minutos. O meu coração batia forte, estava ao rubro. O teu beijo e as tuas palavras afirmavam um interesse que eu pensava não existir recíprocamente. E agora tinha a grande dúvida se brincavas comigo ou, se na verdade, gostarias de mim.
Fui deitar-me no sofá após colocar um dos meus cds favoritos na aparelhagem. Com o comando ia aumentando o som, para ver se ele abafava o do meu coração. As batidas quase que se cruzavam e entrelaçavam.
Quando é que estaríamos juntos outra vez? Na sessão, logicamente. E faltava uma eternidade até lá.

Postado por cromossoma Y

Conduzi. Conduzi sem destino durante horas a fio. Até que me encontrei na rua do teu consultório. Parei o carro, já mais calma, tranquei as portas e enxuguei uma lágrima teimosa que não deixava de tremeluzir no meu olho esquerdo. Como podia eu voltar ali? Como podia eu ir às tuas consultas e falar-te sobre ti? Dizer-te que vivias na minha mente e que eu vivia para aquelas consultas. Dizer-te que quando te observara, desejara estar contigo, a teu lado e ouvir o que dizias sem falar. Como dizer-te que gostava que te sentisses à vontade para partilhar os teus silêncios comigo?! Não podia. Isso ultrapassaria todas as barreiras éticas e profissionais. Destruiria a tua carreira. Mas eu queria conhecer-te tão bem quanto tu me conhecias a mim. Não que conhecesses a minha vida, mas conhecias o meu ser. Conhecias os meus princípios e julgo que sabias o que queria da vida, talvez melhor do que eu. Sabias quando estava triste, irritada, enraivecida ou simplesmente tranquila. Não sabias o que o motivava porque eu inventava sempre alguma história para que não soubesses tudo sobre mim, para manter o interesse e motivar a marcação de posteriores consultas, para que não desses o teu trabalho por terminado.

Na rádio, passava uma melodia semelhante à que te ouvira tocar. Desliguei-o num acesso de raiva e recostei o banco. Fechei os olhos e imaginei-nos abraçados no divã. Era assim que adormecia todas as noites. Era o único pensamento que me tranquilizava o suficiente para poder adormecer, mas nunca era enquanto dormia que sonhava contigo; sonhava contigo acordada. Assim que abria os olhos pela manhã, brindava-te com um "bom dia", tomava o pequeno-almoço enquanto falava contigo e te contava as notícias do dia que havia lido na net, antes de te levantares. Levava-te a meu lado no carro quando ia passear e mostrava-te os locais de que mais gostava. Jantava contigo. Ia ao cinema e a concertos contigo. E já tarde, todas as noites, me deitava contigo.
O truz-truz no vidro da janela do carro e a luz ensurdecedora da manhã assustaram-me e só ao fim duns segundos consegui discernir que era o teu "eu" real aquela minha visão, encostado ao vidro da janela do carro.

postado por cromossoma X

Depois de bater ao de leve no vidro, tive que fazê-lo com mais força. Estavas adormecida ou outra coisa qualquer. Algo me impeliu para ir ter contigo. Trocar umas palavras fora do consultório, saber como te mexias numa mesa de café ou como comias num restautante. Queria conhecer-te melhor, mais profundamente. Mas queria também evitar que tu o percebesses, que contasses com o meu desejo e te oferecesses de mão beijada. Nem sabia se o irias fazer, quanto mais sabê-lo em ti.

Acordaste ou abriste os olhos. Não percebi a diferença. Sei que ficaste assustada quando me viste e a tua primeira reacção foi ligar o carro e fugir. Mas eu toquei outra vez ao de leve no teu vidro, desta vez deixando ficar a mão encostada. Mão cujos sinais eram ampliados pelo vidro. Reparei que olhaste para as linhas da vida e do coração. E também do amor. Fiquei ali com a mão bastante tempo só para que lesses tudo com cuidado. Assim terias algo sobre mim e não seria só eu a escrevinhar coisas sobre ti.

Mas, num repente, arrancaste a toda a velocidade, fugindo de mim, da minha mão e dos meus traços. Fiquei arrasado.

Postado por cromossoma Y


Fugi. Fugi de ti, mas principalmente de mim. Fugi durante muito tempo. Fugi para muito longe. Viajei. Vi o mundo. Conheci os homens. Mais alguns, pelo menos. Casei. Tive uma filha. Divorciei-me. Voltei para Portugal quando achei que já não me importavas. Quando achei que era outra e tu serias outro.

Foi um encontro fortuito. Até já tinha esquecido que gostavas daquele restaurante. Jantava lá com um homem, um dos muitos que me entretinham durante uns dias e nunca me faziam interessar por eles quando já os conhecia. Homens simpáticos, agradáveis à vista, quase todos pelo menos. Homens com dinheiro, bem sucedidos, vazios… não sabiam apreciar um filme, uma música, um quadro, um olhar ou uma paisagem. Não conheciam a mente humana e pareciam desconhecer que outros para além deles próprios a tivessem. Homens inteligentes, vividos, que desconheciam que outros também pudessem ser inteligentes e ter vivido. Nunca me pronunciei com algum sobre isso. Para quê? Olhariam para mim como se fosse louca, far-me-iam um sorriso condescendente e dir-me-iam o quanto estava bonita e graciosa naquela noite. Proporiam um brinde, como propõem sempre, e ansiariam pelo momento de me meterem na cama e eles comigo. Sabia o procedimento de cor, mas deixava-o decorrer sem incidentes de maior. Cada qual faz o seu papel… E eu aceitava o meu. Acho que foram as tuas consultas que me levaram a aceitar o meu papel mais facilmente, trouxeste-me uma serenidade que nunca tinha conhecido, até me ter apaixonado por ti. A fúria, a raiva pelos que não respeitavam quem sou, quem era, já me haviam trazido amargos dissabores. Sempre fui irascível. Aquela relação, a que me levou a deitar-me no teu divã e a sentirmo-nos, levou-me ao precipício. Aquele homem, igual a tantos outros com que antes e depois me havia de deitar, fez-me perder a cabeça. Enojavam-me os seus modos arrogantes e orgulhosos. Para quê tanto pedantismo? Não passava de esterco. Um vulto sem emoções, sem defeitos, porque sem quaisquer qualidades. Um escolarizado, socializado, domesticado. Sem livre arbítrio, sem personalidade ou opiniões. E ali estava ele, a dizer-me que nos iríamos casar, porque seria bom para a sua carreira e os pais aprovavam. Quando o deixei cair inerte a meus pés, senti-me liberta e mais feliz do que alguma vez me havia sentido. Daí que achassem que estava louca, suponho!

Estranhamente, não te reconheci imediatamente. Estavas mais velho, é certo, mas não creio ter sido isso. Não sei o que foi. Talvez a sensação de surreal, de inesperado. Estavas só, como sempre te havia visto. Na mão, o teu caderninho, a tua velha sebenta. Refreei as lágrimas que me dançaram nos olhos querendo saltar e rolar brincando face abaixo. Pedi licença ao senhor com quem estava e afastei-me dele como se de um indigente se tratasse. Caminhei de frente para ti, que tinhas agora levantado os olhos para mim, rodeei-te e assentei a mão no teu ombro enquanto te murmurava ao ouvido: Lembras-te?

Amámo-nos naquela casa-de-banho minúscula como nunca ninguém amou. Com a urgência que 9 anos acarretam. Sem palavras que as acções não dissessem. No meio de lágrimas e saliva, baba e ranho. Como animais. Animais que sentem, sentem demasiado. Devíamos tê-lo feito antes, muito antes, mas não seria tão bom. Sempre achei que uma história com passado era mais bonita.


postado por cromossoma X

Procurei-te quase até ao infinito. Passei por todos os lugares que sabia que conhecias. Contactei a tua família que me avisou da tua partida, da tua viagem.
Fiquei quebrado por dentro. Por fora sentia-me mais triste. Abandonei a minha práctica e fechei o consultório. Afinal era apenas um local para te encontrar.
O dinheiro escasseou e fui obrigado a arranjar um trabalho. Felizmente com alguma liberdade, como afinador de pianos umas vezes, como explicando do mesmo outras tantas. Com este tipo de vida, continuei os meus hábitos. A pouco e pouco fui fazendo obras no armazém. Necessitava de mais conforto, agora que estava sózinho. Realmente sózinho.
No tempo livre que me restava comecei a escrever. Escrevi muito, prosa, poesia e, imagine-se, pautas que se confundiam com as palavras. Eram peças musicais para serem lidas ou vice versa. Durante uns anos ninguém as percebeu e quis editar até que um louco mais solitário que eu as entendeu e tornou-se no meu editor. Estranhamente, estes livros conheceram sucesso em países distantes, mas não no meu. Também tive o cuidado de nunca assinar nada com o meu nome e ia inventando outros à medida das necessidades.
O meu velho piano e o meu velho amigo violinista eram quase tudo para mim, davam-me o gozo das relações físicas que não tinha nem queria ter.
Os amigos e amigas foram desaparecendo aos poucos, temendo a minha súbdita loucura ou fartando-se de tentar com que eu tivesse uma vida comum. Como se isso fosse possível.
Tudo o que fazia era criado e levado pelo teu cheiro. Revia todas as noites um bocado de ti, benditas gravações. ou malditas que não me deixavam esquecer-te.
Continuei a viver assim, durante longos anos, até que senti uma mão no meu ombro.

Postado por cromossoma Y

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